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1984
Depois de décadas tendo que montar e desmontar as gigantescas arquibancadas de ferro, finalmente o samba ganharia um local de desfile próprio e definitivo. Cercada de indecisões e polêmicas, surgia das pranchetas do arquiteto Oscar Niemeyer a tão sonhada Passarela do Samba, ou melhor, a passarela de desfiles, uma vez que, na concepção do professor Darci Ribeiro, o novo espaço deveria abrigar os festejos carnavalescos e as paradas militares.
Muitos consideraram desnecessária a construção de uma obra tão gigantesca e onerosa para ser efetivamente utilizada apenas em alguns poucos dias durante o ano. "Como ficaria a paisagem da cidade no restante do ano?", perguntavam alguns, diante das imensas arquibancadas de concreto em pleno Centro da cidade. A antiga Rua Marquês de Sapucaí, que já recebia o desfile das principais escolas há algum tempo, passaria a ser avenida. Nem o anúncio de que o local durante o ano iria abrigar uma escola pública, importante para a comunidade do Catumbi, foi capaz de acalmar a ira dos que se posicionaram contra o projeto.
Enquanto as autoridades discutiam o nome definitivo para o espaço, a sabedoria popular tratou de batizá-lo por conta própria, fazendo surgir o "sambódromo", nome pelo qual ficaria conhecido no Brasil e no exterior e seria copiado em outras cidades.
Até entre os sambistas o projeto encontrou resistência, principalmente no tocante à construção da Praça da Apoteose. Concebido pelas autoridades, o espaço se constituiria em uma praça onde as escolas deveriam apresentar algum espetáculo especial para o público, justamente onde estariam as maiores arquibancadas. Segundo os sambistas, que alegavam não terem sido consultados quando o projeto estava sendo idealizado, tal "espetáculo" era algo que não fazia parte da tradição das escolas de samba - que evoluíam de maneira contínua até a dispersão - e no novo espaço aconteceria sob os imensos arcos projetados por Niemeyer.
Em meio às afirmativas de que a maioria das escolas não faria a "apoteose", a nova passarela trouxe uma verdadeira revolução para as escolas de samba. Embaixo das imponentes arquibancadas de concreto, haveria um espaço popular, que transmitiria calor humano para os desfilantes. Não haveria a tradicional decoração na avenida, destacando os contornos projetados pelo renomado arquiteto brasileiro.
O desfile ocorreria pela primeira vez em dois dias, domingo, dia tradicional das escolas de samba, e segunda-feira. Cada dia teria seu próprio corpo de jurados e sua respectiva campeã. As três mais bem colocadas de cada dia, juntamente com as duas primeiras colocadas do grupo 1-B, participariam de um desfile especial programado para semana seguinte, que valeria o chamado "supercampeonato".
Com a passarela despontando como a grande vedete do carnaval, as escolas tiveram que se desdobrar para realizarem um desfile que estivesse à altura das expectativas. Muitos mistérios e segredos cercavam os barracões às vésperas do carnaval.
A Portela participaria do desfile de domingo, 03 de Março, ao lado de Império Serrano, Caprichosos de Pilares, Salgueiro, União da Ilha, Império da Tijuca e Unidos da Tijuca. Contudo, apenas na manhã de segunda-feira, já com o brilho do sol, a Águia altaneira entraria na avenida.
Os carnavalescos Edmundo Braga e Paulino Espírito Santo prepararam um desfile para ser emocionante, sobretudo para os portelenses. O enredo era "Contos de Areia", que homenageava os portelenses Paulo da Portela, Natal e Clara Nunes, representados respectivamente pelos orixás Oranian, Oxóssi e Iansã.
Antes do desfile, a bateria esquentava com sambas de Clara Nunes, falecida em abril do ano anterior. Desde o início da década de 70, Clara estava sempre presente aos desfiles da Portela, e a homenagem, no primeiro carnaval sem a presença do "Sabiá", levou às lágrimas vários amigos e admiradores da cantora.
O clima de emoção tomava conta de todo o sambódromo quando o esquenta da bateria foi interrompido para que um minuto de silêncio fosse respeitado. A batida seca do surdo é intercalada pela lembrança de Clara, Paulo e Natal. De repente, o silêncio é interrompido. Morteiros começam a explodir no céu. O som do estouro dos fogos se mistura com a batida firme da bateria de mestre Marçal. Os puxadores cantam a plenos pulmões, ajudados pelo potente sistema de alto-falantes da avenida. O desfile havia começado.
Manacéa, Alberto Lonato, Ari do Cavaco, Casquinha, Chico Santana e outros grandes nomes que dispensavam apresentação faziam parte da tradicional comissão de frente, mostrando desde o início toda a tradição que a Portela apresentaria na avenida.
A Águia, sempre cercada de mistérios, aparecia em dose dupla na avenida. A primeira, semi-submersa, representava a escola nascendo do mar, assim como o mundo. Após o abre-alas, várias caravelas invadiam a passarela e abriam o desfile da escola.
No primeiro setor, a Portela trazia a Bahia, berço dos Orixás, para a avenida. A partir de então, seguia a homenagem aos grandes portelenses, relacionados com a história de seus respectivos orixás.
Primeiro, Paulo da Portela e seu tempo. Criador da Portela, do mundo azul-e-branco. Oranian.
Depois, Natal. O jogo do bicho e os grandes anos da escola. Natal foi responsável pela maior parte das glórias da Portela. Oxóssi.
E, por último, Clara. Homenagem a Minas Gerais, trazendo o congo e o reisado para a avenida. As forças da natureza. "É cheiro de mato, é terra molhada, é Clara guerreira, lá vem trovoada". Iansã.
A beleza das alegorias e das fantasias impressionava. Impressionante era também o contingente que a Portela levava para a avenida, mais de 5.000 componentes. À frente da bateria, Regina e Paulo Roberto defendiam o glorioso pavilhão azul-e-branco. O samba composto por Dedé da Portela e Norival Reis entraria para a história da Portela.
No final, o público da Apoteose aplaudia e aclamava a Portela como favorita para a conquista do campeonato, e a apuração, realizada no Maracanãzinho, confirmou as expectativas.
Desde o primeiro quesito, a Portela se manteve à frente, conseguindo o campeonato com 203 pontos, 2 a mais que o Império Serrano. Era o 21º título da Portela, e começava a tradicional festa em Madureira.
Portela, Império Serrano, Caprichosos de Pilares (primeiras colocadas no desfile de domingo), Mangueira, Mocidade Independente de Padre Miguel, Beija-Flor (primeiras colocadas de segunda-feira), Unidos do Cabuçu e Acadêmicos de Santa Cruz (campeãs do grupo 1-B) se classificaram para o desfile extra do dia 10 de março.
No desfile extra, apenas os "quesitos de desfile" foram julgados, deixando de lado os "quesitos de barracão", como fantasias e alegorias. A Portela ficou com a segunda colocação nessa apresentação.
Ficha técnica:
Resultado: Campeã do Grupo 1A, com 203 pontos e 2ª Colocada no Supercampeonato
Data, Local e Ordem de Desfile: 6ª Escola de 03/03/84, Sábado, Av. Marquês de Sapucaí (Passarela do Samba )
Carnavalesco(s): Edmundo Braga e Paulino Espírito Santo
Presidente: Carlos Teixeira Martins
1º Casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira: Regina e Paulo Roberto
2º Casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira:
Bateria: 300 Componentes sob o comando de Mestre Marçal
Contigente: 5.000 ComponentesSamba enredo:
autores: Dedé da Portela e Norival ReisBahia é um encanto a mais
Visão de aquarela
E no ABC dos orixás
Oranian é Paulo da Portela
Um mundo azul-e-branco
O deus negro fez nascer
Paulo Benjamim de Oliveira
Fez esse mundo crescerOkê, okê Oxossi
Faz nossa gente sambar
Okê, okê Natal
Portela é canto no arJogo feito, banca forte
Qual foi o bicho que deu?
Deu águia, símbolo da sorte
Pois vinte vezes venceuÉ cheiro de mato
É terra molhada
É Clara guerreira
Lá vem trovoadaEpa hei Iansã, epa hei
Na ginga do estandarte
Portela derrama arte
Nesse enredo sem igual
Faz da vida poesia
E canta sua alegria
Em tempo de carnaval
Fonte: Portela Web
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